*Nota: o artigo é extraído do meu livro sobre a Reforma, que será publicado nas próximas semanas, se tudo der certo. Boa leitura!
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A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) foi de longe a maior guerra religiosa da história, na qual estiveram envolvidas, de uma maneira ou de outra, “não menos de cem milhões de pessoas”[1]. Apologistas católicos mal-intencionados têm tentado colocar a culpa dessa guerra na conta do protestantismo, quando ela foi mais uma expressão da intolerância e do fanatismo católico que teve por consequência milhões de mortes. Os papistas que se apropriam da Guerra dos Trinta Anos para atacar a Reforma costumam utilizar para isso dois meios desonestos. O primeiro é sustentar que a culpa é dos protestantes porque se eles não existissem não haveria guerra(!), o qual deixarei para comentar mais tarde. O segundo é atribuir toda a guerra à Defenestração de Praga, quando dois regentes católicos foram lançados de uma janela direto a uma pilha de esterco (eles não morreram, mas eu não gostaria de estar na pele deles).
Esse tipo de argumento ignora todo o cenário mais amplo, incluindo tudo de muito mais importante que havia acontecido até ali, tudo que gerou aquela situação e também tudo o que ocorreu depois. Na verdade, a guerra foi “o resultado da união dos governos católicos da Alemanha para destruírem o protestantismo no império”[2], como afirma Nichols. Desde muito antes os jesuítas planejavam uma recatolização da Alemanha por meio de conspirações políticas e a imposição do Estado, como comenta Bleye:
A Igreja aspirava a restaurar o catolicismo em todas as terras do Império, e a Companhia de Jesus proporcionou ao pontificado os grupos de combate que necessitava. Protegidos pelo imperador, os jesuítas se estabeleceram em Colônia, Tréveris, Munich, Ingolstadt, Innsbruck, Viena e Praga, e educaram em seus colégios aos chefes da futura restauração católica. O êxito foi se afirmando durante os reinados de Maximiliano II (1564-1576) e Rodolfo II (1576-1612). O catolicismo defendeu briosamente seu predomínio no sul do império e nas províncias romanas, ganhou os bispados do Mein e disputou com o protestantismo a Baixa Saxônia; Rodolfo, por sua vez, proibia o culto protestante na Baixa Áustria, enquanto os jesuítas criavam na Boêmia novos colégios e favoreciam o matrimônio dos senhores tchecos com austríacas, italianas ou espanholas católicas.[3]
Mas a bomba só estourou na Boêmia, quando “o imperador Matias (1612-1619) proíbe os protestantes de construir templos, a despeito de promessa inicial de tolerância”[4]. Como tudo que é ruim pode piorar, Matias tomou providências para que seu primo Fernando, um “católico militante”[5], fosse eleito seu sucessor. Fernando era o “cabeça dos Habsburgos”[6], e, como se não bastasse, foi educado pelos jesuítas[7], que o tornaram um “católico romano ardoroso”[8], determinado a “eliminar o protestantismo”[9]. Fernando era cognominado “o homem dos jesuítas”[10], que o ensinaram “a odiar os protestantes”[11]. Cantú, historiador católico, afirma que “Fernando não se sujeitou nunca a permitir aos reformados o livre exercício da sua religião em seus Estados hereditários”[12].
Sua obstinação, intolerância e fanatismo em querer suprimir o protestantismo a despeito dos votos de tolerância que então prevaleciam na Boêmia suscitou a guerra, que começou na Boêmia e depois ganhou proporções maiores. Mousnier comenta que “o imperador, discípulo dos jesuítas, mostrava-se disposto a exterminar o protestantismo do império”[13]. Como o «campeão da Contrarreforma», Fernando exigia em seus estados a conversão ou o exílio, buscando de todas as formas restaurar o catolicismo romano como a única religião do império e suprimir o protestantismo. Anos antes, o imperador Rodolfo II (1575-1612) havia assinado a Carta de Majestade, em que defendia as liberdades religiosas. Mas Fernando, querendo governar como um ditador totalitarista, “quis revogar as cartas-régias que garantiam as liberdades da Boêmia”[14].
Nessa época, a Boêmia 90% protestante[15], e mesmo assim “se mantinha firmemente apegada à liberdade de cultos”[16]. Ninguém era incomodado por ser católico ou protestante, em um clima de tolerância e pluralidade incomum para aqueles dias. Mas Fernando, por influência dos jesuítas, detestava essa pluralidade mais do que tudo e “quis lhes impor, com o absolutismo, a unidade católica”[17]. Isso não foi o pior: Fernando ainda queria “fazer do reino da Boêmia a base de sua potência monárquica”[18] – ou seja, o centro do seu império teocrático católico. Essa era uma verdadeira declaração de guerra aos protestantes, esmagadora maioria da população do estado. Não demorou para os massacres começarem e, com eles, a resistência dos boêmios, acostumados a pegar em armas para se defender desde os tempos de João Huss.
Rodríguez escreve:
Não tardaram efetivamente em surgir as consequências da proclamação de Fernando como sucessor no trono boêmio. Depois de algumas mudanças realizadas na administração e desfavoráveis aos protestantes, a minoria católica adotou uma atitude em extremo arrogante. Negou-se autoridade abertamente à Carta Majestade e a seus autores; alguns camponeses, estabelecidos em terras do domínio real, que se negaram a declarar-se católicos, sofreram o desterro; e nas cidades propriamente reais se dificultou aos protestantes a obtenção dos privilégios de cidadania, e em consequência o acesso aos cargos responsáveis administrativos nos domínios reais. Na mesma Praga regia a quase completamente protestante Altstadt (cidade velha) um Conselho municipal em que mais da metade de seus membros eram católicos; e a inquietude reinante se tornou em pânico, quando o dito Conselho declarou (novembro de 1617) necessária sua vinda para nomear ou destituir qualquer indivíduo do clero paroquial, e quando os documentos de fundação das numerosas igrejas de Praga (em sua maior parte utraquistas) foram submetidos à autoridade inspetora de juízes reais, e se recusou ao clero protestante o pagamento das dotações católicas. Procedimentos análogos se seguiram em outras cidades reais; e se tornou claro que, como nos domínios reais, seus moradores perderiam a liberdade de praticar sua religião. Ademais, o chanceler Lobkowitz logo encontrou oportunidade para tomar a seu cargo a censura de toda classe de impressos.[19]
Malucelli confirma que “o pretexto para iniciar o conflito foi dado pela Boêmia, onde a maioria da população, protestante, era oprimida por um monarca católico”[20], e Goldstone assegura que “a Guerra dos Trinta Anos começou com o aniquilamento das elites protestantes na província austríaca da Boêmia”[21]. Roberts, na mesma linha, declara que “as brigas religiosas irromperam novamente quando um imperador do século XVII, da família Habsburgo, fortemente imbuído dos princípios da Contrarreforma, tentou de novo fomentar o catolicismo. O resultado foi a apavorante Guerra dos Trinta Anos”[22]. Pirenne também comenta que “os imperialismos de Fernando II e de Filipe IV provocaram a guerra dos Trinta Anos”[23].
Dickens aborda os acontecimentos seguintes:
Mais violenta ainda é a reação eclesiástica dirigida pelo núncio João Caraffa. Os pastores são banidos da Boêmia, as escolas protestantes fechadas, a famosa Universidade de Charles e outros estabelecimentos de ensino superior entregues aos jesuítas. Muitas prisões fazem sujeitar as cidades, pelo menos aparentemente. Cerca de 36.000 famílias – um quarto talvez dos proprietários rústicos e da população urbana – preferem partir a aceitar o catolicismo, enquanto aos servos não é permitido escolher. A Alta Áustria é purgada da heresia, mediante medidas semelhantes.[24]
O estopim para a guerra em si foi a destruição de duas igrejas luteranas, em 1618[25]. Rodríguez diz que “em Klostergrab, o abade coroou uma série de arbitrariedades, mandando derrubar a igreja protestante, e manifestando assim a toda a população protestante da Boêmia que a Carta de Majestade era já um documento sem valor algum”[26]. Foi só depois de todas essas ações repressivas e ditatoriais que os boêmios rejeitaram Fernando como imperador e provocaram a Defenestração de Praga[27], como escreve Martinez:
Os protestantes haviam construído dois templos no arcebispado de Praga. Ambos os templos foram demolidos. Exasperados por este feito, os boêmios assaltaram o castelo de Praga e lançaram pela janela a dois governadores que administravam a Boêmia.[28]
Em síntese, a Guerra dos Trinta Anos é um acontecimento causado pela intolerância e fanatismo de um imperador germânico manipulado pelos jesuítas, o qual tentou suprimir à força o protestantismo mesmo contra as leis de tolerância então vigentes, e cujo tiranismo gerou represálias. A guerra que começou na Boêmia logo tomou proporções continentais, pois o imperador contava com o apoio da Liga Católica no extermínio dos protestantes boêmios, que por sua vez suplicaram a ajuda dos estados protestantes. Estava assim desenhada a primeira grande guerra europeia, que teria como principais proponentes do lado católico Espanha, Áustria, Hungria e Polônia (além dos estados católicos da Alemanha), e do lado protestante Suécia, Holanda, Inglaterra, Escócia e Prússia (além dos estados protestantes da Alemanha, entre eles a própria Boêmia).
Entendendo este panorama, fica patente e notório o sofisma daqueles que jogam nas costas do protestantismo a culpa pela Guerra dos Trinta Anos, só porque ela não ocorreria se a Reforma não tivesse existido. Essa é a mesma “lógica” de quem afirma que só existe estupro porque existem mulheres, ou que só existem assaltos porque existem vítimas. É literalmente uma inversão grosseira e criminosa para se culpar a vítima em lugar do malfeitor. Um imperador facínora e tirano exige conversão ou morte da parte dos protestantes, começa a destruir igrejas reformadas e a matar seu povo, e mesmo assim a culpa é dos protestantes por se defenderem e tentar garantir sua sobrevivência. É realmente um argumento canalha, que expressa bem o caráter e índole de seus proponentes.
• A guerra
Fernando logo conseguiu o apoio de Filipe III da Espanha em sua guerra contra os boêmios. Com esse apoio, ele “capturou terras protestantes e fechou igrejas e escolas luteranas e reformadas na Boêmia, Áustria e Morávia”[29]. Isso se deu em novembro de 1620, quando o exército do imperador comandado por Maximiliano, o duque da Baviera, derrotou o exército de Frederico V na Montanha Branca, em Praga. Bleye diz que “a Boêmia se submeteu e o imperador derrogou a Constituição deste reino e proibiu a religião protestante”[30]. Enquanto isso, o exército espanhol invadiu e conquistou o Palatinado, um “tradicional bastião reformado”[31], onde agora estava proibida a pregação evangélica[32].
Fernando destituiu o rei protestante da Boêmia, retirou sua qualidade de eleitor e em seu lugar colocou justamente o chefe da Liga Católica, Maximiliano da Baviera. Como resultado, ele “tentou converter pela força os adversários da Igreja Romana, as cidades perderam os seus privilégios e avalia-se geralmente em 30.000 o número de exilados que, abandonando tudo o que possuíam, fugiram para os montes Tatras e se dispersaram através da Europa”[33]. A derrota dos protestantes neste período inicial da guerra “sacrificava a Boêmia, destruída como nação; a política local dos jesuítas – deportações e execuções – foi terrível”[34]. Sobre a devastação da Boêmia pelas forças católicas, Grimberg escreve:
Deram-se então na Boêmia horríveis perseguições contra os protestantes e os adversários do imperador. Entre os chefes da oposição, todos os que não tinham podido fugir foram executados; todos os que haviam participado na revolta viram os seus bens confiscados. Mais da metade das terras mudaram, assim, de mãos. Os pastores evangélicos foram expulsos do país ou lançados na prisão. Milhares dos seus fieis sofreram a mesma sorte. Os tchecos haviam perdido todos os seus chefes, daí resultando a germanização completa da Boêmia, da Morávia, da Silésia e da Alta e Baixa Áustria.[35]
Pirenne acrescenta:
Todas as liberdades tchecas foram derrogadas; a monarquia passou a ser hereditária; o catolicismo foi imposto como única religião, começando com isso a perseguição contra os protestantes, e os bens da nobreza tcheca foram confiscados em proveito do imperador, que os distribuiu a seus favoritos, ou os vendeu a entidades por ele constituídas.[36]
Os massacres na Boêmia continuavam, e o morticínio parecia não ter fim. Para ter uma ideia das cifras, a Boêmia contava mais de quatro milhões de habitantes no começo da guerra, e apenas 800 mil ao final dela[37]. Este verdadeiro genocídio que é muitas vezes ignorado ou pouco lembrado nas salas de aula é considerado até hoje um dos maiores crimes de guerra já cometidos, cuja proporção só consegue ser superada por regimes totalitários de muitos séculos mais tarde, quando passaram a existir armas de destruição em massa.
As regiões que mais sofreram com a guerra foram justamente as mais protestantes da Alemanha, nomeadamente Augsburgo, o Palatinado e a Boêmia[38]. Isso era em grande parte devido ao modus operandi do exército católico, que não visava apenas ganhar uma batalha ou subjugar um exército inimigo, mas recatolizar uma região inteira através da compulsão e violência. Mas não para por aí. Fernando sabia que não bastava o exílio, as conversões forçadas e os massacres, porque isso tudo já havia sido largamente colocado em prática na época de João Huss, e mesmo assim os boêmios se reergueram nas gerações futuras e mantiveram a fé reformada. Fernando compreendeu que era preciso fazer mais do que matar o corpo: a própria alma boêmia tinha que ser destruída.
Assim, Fernando, “apoiando-se na ideologia da Contrarreforma, implantou na Boêmia um regime autoritário que empreendeu a germanização das populações tchecas”[39]. De um momento para outro,
os camponeses se tornaram servos e, para impedir sua emigração, se concluíram tratados com Polônia e Hungria. O estatuto jurídico imposto aos servos era verdadeiramente desumano: proibição da língua e costumes tchecos; pena de morte para o adultério; trabalho obrigatório a partir dos quatorze anos de idade, em proveito dos senhores; impossibilidade de praticar um ofício sem sua autorização, e obtenção do consentimento dos mesmos para a celebração de matrimônios. Finalmente, a moeda nacional foi depreciada em metade e substituída por outra. Para acabar com o espírito nacional tcheco, Fernando II tratou de destruir sua cultura, o idioma alemão foi adotado como língua oficial e os livros tchecos foram requisitados.[40]
Pirenne adiciona que “a política de absoluta desnacionalização arruinou o país, e as cidades se despovoavam até o ponto de que em menos de um século a população passou de quatro milhões de habitantes a um milhão”[41]. Lamentavelmente, esse assassinato da cultura tcheca e a consequente morte da alma dos boêmios impregnada por Fernando II não pôde ser desfeito. Sob a égide de um catolicismo forte e autoritário, a Boêmia (hoje território da República Tcheca) continuou 96% católica romana até 1910, e hoje é um estado secular ateu, onde 79% da população consistem de ateus, agnósticos ou irreligiosos em geral, segundo o censo mais recente de 2011[42]. Do protestantismo ao catolicismo autoritário, e do catolicismo ao ateísmo, é no que Fernando e a Contrarreforma conseguiram transformar a Boêmia.
Mas Fernando não se contentou em aniquilar o protestantismo na Boêmia. Seu desejo, que era o anseio do papa e dos jesuítas que fizeram a sua cabeça, não era de exterminar os protestantes de um único estado, mas de exterminá-los no mundo todo. A «praga herética» tinha que ser eliminada a qualquer custo e em qualquer lugar. Este sempre havia sido o sonho do papado, desde a época de Lutero e das primeiras Dietas do império; desde Leão X e Clemente VII. Até agora eles só haviam conseguido essa façanha em grandes proporções na França, Espanha, Portugal, Itália, Áustria e em parte dos Países Baixos, mas agora tinham a chance de destruí-los ao fio da espada no continente inteiro, e não perderiam tamanha oportunidade.
Assim, a Liga Católica decidiu avançar e dar prosseguimento a seu regime totalitário também nos outros estados[43], o que suscitou a entrada de Cristiano IV da Dinamarca na guerra, com a ajuda de subsídios ingleses e tropas holandesas em auxílio dos protestantes[44]. Isso exigiu dos católicos a formação do maior exército já visto até então, o do capitão Wallenstein. Calcula-se que seu exército era composto de centenas de milhares de soldados, isso sem mencionar “o séquito de vivandeiros, comerciantes ambulantes, prostitutas e trabalhadores”[45]. Seu exército era “o maior e mais bem organizado empreendimento particular já visto na Europa antes do século XX”[46], e causou uma devastação sem igual na história da Alemanha.
Além das muitas mortes pela guerra provocadas pelos soldados a serviço de Wallenstein, milhões pereceram de fome. Huxley diz que “os sobreviventes comiam ervas e raízes, bem como as crianças e doentes, além de cadáveres há pouco enterrados”[47]. Uma das carnificinas mais conhecidas foi a de Magdeburgo, em 20 de maio de 1631, quando “seus habitantes tratados com brutal ferocidade”[48] e o exército católico assassinou “milhares dos habitantes da cidade”[49], incluindo os civis – velhos, mulheres e crianças – que não estavam envolvidos na guerra, mas que eram massacrados assim mesmo, por serem protestantes.
Coube a Wallenstein e ao conde de Tilly as maiores mortes da guerra, em sua maioria de civis assassinados covardemente, ou dos que pereceram em decorrência das indescritíveis devastações que assolavam a Alemanha. Suas centenas de milhares de soldados queimando campos, ocupando e pilhando cidades por todo o império obrigaram até os príncipes neutros a entrar na guerra para não ter que sofrer com a devastação, e os que permaneceram neutros viram suas terras serem devastadas enquanto abrigavam as tropas imperiais. Um clima geral de desolação e desesperança tomava conta da Europa protestante.
A ruína parecia estar completa. A causa protestante, perdida. Mas quando tudo indicava ser o fim da Reforma e o triunfo do papado, uma luz surge no fim do túnel. Essa luz não era uma nação protestante e nem um trem vindo em sua direção. Em vez disso, era nada a menos que a França católica, que decidiu entrar na guerra ao lado dos protestantes, embaraçar tudo e mudar drasticamente os rumos da guerra como nunca antes. Se você está se perguntando por que um país tão católico como a França – o mesmo que perpetrou a chacina da Noite de São Bartolomeu e que expulsou os huguenotes do país – entraria na guerra justamente contra a Liga Católica, recomendo que volte e leia o capítulo 3, onde já havíamos visto inúmeras vezes a França “salvar” a Reforma em seus primórdios, em uma guerra interminável com Carlos V que lhe atava as mãos e o impedia de usar toda a força contra os “inimigos internos”.
A França era, de fato, o maior inimigo político dos Habsburgos, que dominavam a Espanha e o Sacro Império havia séculos. Suas guerras políticas, que vez ou outra ganhavam uma trégua ou uma «falsa paz», nunca cessavam realmente. Mais do que ninguém, a França sabia as consequências de se deixar a Espanha dos Habsburgos alcançar um predomínio continental tão grande, que eram muito mais sérias e graves do que o não-extermínio dos protestantes. Assim, a França preferiu priorizar a segurança de sua nação em vez da eliminação da “heresia”, como a Contrarreforma exigia. Essa mudança inesperada nos planos equilibrou de novo as forças no cenário europeu, pois a França era o único país poderoso o suficiente para fazer frente à imponente Espanha, que, embora já em crise econômica, ainda contava com o maior contingente militar da Europa.
A entrada da França na guerra não era apenas uma ajuda militar considerável, mas tinha também um efeito moral. Alguns pequenos estados protestantes que ainda não haviam entrado na guerra por medo de sofrerem o mesmo massacre impiedoso suscitado pelos católicos na Alemanha, ao verem a decisão da França, tomaram coragem e declararam guerra a Fernando II também. Entre eles se destaca os cantões suíços e a Suécia de Gustavo Adolfo, que conseguiu muitos notáveis e improváveis triunfos mesmo com um exército modesto, até ser morto em batalha. Até mesmo alguns católicos italianos, como o duque de Saboia, entraram na guerra do lado protestante a fim de se livrar do domínio espanhol[50]. Por isso este segundo período da Guerra dos Trinta Anos passava a ser, antes de tudo, político.
Essa inesperada e indesejável mudança radical nos rumos da guerra deixou a Espanha de Filipe IV furiosa e desesperada, a qual começou a exigir a entrada na guerra de estados católicos que ainda não haviam enviado soldados para as batalhas, os quais “foram convocados a contribuir com a maior quantidade possível de recursos em homens e material”[51]. Dois casos são particularmente emblemáticos e tornariam as coisas ainda mais difíceis para a Espanha: Portugal e Catalunha. Naquela época, Portugal não era um país independente da Espanha, mas “em vez de somar seus exércitos ao dos espanhois, proclamou sua independência e elevou ao trono o seu vice-rei, o duque de Bragança, que foi proclamado com o nome de João IV. Imediatamente ao assumir o cetro, o novo rei de Portugal trama uma aliança com França e Holanda e declara guerra à Espanha”[52]. Nunca antes a expressão “o tiro saiu pela culatra” fez tanto sentido.
A Catalunha tomou uma decisão similar à de Portugal, respondendo às reivindicações da Espanha “com uma insurreição análoga à das Províncias Unidas, e erigindo-se em república independente (1640)”[53]. Essa rivalidade entre Espanha e Catalunha se estendeu ao longo dos séculos e tomou proporções cada vez maiores, com o problema prosseguindo até os nossos dias. Teimosos, a Espanha e o Sacro Império permaneceram guerreando quase sozinhos até 1648, quando após múltiplos reveses foram obrigados a aceitar a derrota no Tratado de Westfália, o qual “reconheceu a independência de Portugal e dos Países Baixos em relação à Espanha, e a liberdade de culto a reformados, luteranos e católicos nos territórios envolvidos na guerra”[54].
Assim, por ironia do destino, foi justamente a divisão católica que permitiu ao protestantismo sobreviver apesar de toda a perseguição instigada pelos jesuítas e de todo o projeto papal da Contrarreforma.
• Resultados da guerra
Se por um lado os católicos exigiam o extermínio do protestantismo para encerrar a guerra enquanto venciam, por outro lado a vitória protestante não implicou em nenhuma violação das liberdades católicas. Nichols escreve sobre o acordo firmado entre a parte derrotada e a vencedora:
Concordou-se que todas as partes do império conservariam as formas de religião, protestante ou católica, que tinham em 1624. Este acordo acabou com a agressão da Contrarreforma e também com o progresso do protestantismo. Até 1930, o caráter religioso das regiões da Alemanha ainda permanecia o mesmo desde o tratado de paz. A tolerância religiosa garantida pelos governantes foi assegurada desde então, até os dias atuais. Foi uma grande conquista no terreno da liberdade de consciência. Só a Reforma conseguiria tal.[55]
Quem não gostou nada nada da paz foi, como sempre, o papado, que pretendia se aproveitar da guerra como um instrumento de elimação dos “hereges”, e por isso preferia que continuassem se matando até atingir este fim. Cantú diz que “o papa Inocêncio X protestou contra esta paz, como pouco religiosa”[56], Baker alega que a paz ocorreu “apesar da oposição oral do papa Inocêncio X”[57], Walker afirma que “o papa a denunciou”[58], Oliveira menciona a “oposição do papa Inocêncio X”[59] e acrescenta que o papa “em nenhum momento respeita os termos da Paz de Westfália, inclusive continuando nos seus esforços para recatolizar através da subversão e diplomacia”[60].
Quem também se indignou com o cessar das hostilidades foram os jesuítas, que, segundo Johnson, “desempenharam um papel fundamental na Guerra dos Trinta Anos, tanto em seu início e na ‘conversão’ forçada da Boêmia quanto no impedimento de uma paz conciliatória após as vitórias do exército protestante sueco, sob o comando de Gustavo Adolfo”[61]. Quem mais sofreu com a atuação dos jesuítas foi a Boêmia, estado protestante e livre no início do século XVII, mas “as vicissitudes políticas da Guerra dos Trinta Anos e o governante católico romano, reforçado pelo zelo missionário dos jesuítas, eliminaram quase que totalmente o protestantismo”[62].
A Guerra dos Trinta Anos deixou a Alemanha arruinada. “Por causa dela, muita coisa da Alemanha foi perdida. Cidades e vilarejos prósperos foram dizimados ou destruídos”[63]. Walker assinala que “a população decaíra de dezesseis milhões a menos de seis. Os campos estavam devastados. O comércio e a indústria, destruídos. Acima de tudo, a vida intelectual estagnara, a moral se tornara áspera e corrupta, a religião estava gravemente prejudicada”[64]. Grimberg também descreve os horrores deixados pela guerra:
Inúmeras aldeias e burgos da Alemanha tinham sido completamente aniquilados, arrasados; os campos ficavam por cultivar, estradas e pontes encontravam-se em ruínas. Em certas regiões, os lobos e outros animais ferozes podiam multiplicar-se com todo o sossego e atacavam até, em bandos, a população das cidades. A angústia da época exprimia-se nas suas visões do Apocalipse. Muitos supunham o fim do mundo muito próximo.[65]
Pirenne diz que “as lutas e miséria que havia suportado o povo alemão durante aquela guerra interminável, imposta por Fernando II para conseguir uma unidade que não possuía e nem desejava, haviam sido tão crueis como vãs, e mais de um século ia ser necessário para voltar a uma vida normal”[66]. Não é de se espantar que apologistas católicos desonestos usem a Alemanha do século XVII como um exemplo de “país protestante artrasado”, sem mencionar que este atraso foi causado justamente pelo imperador católico facínora e a Igreja que o apoiava.
Os números exatos das vítimas da guerra são desconhecidos, mas há historiadores como Cairns que falam em um terço da Alemanha[67], e outros como Curtis que apontam metade ou mais da população[68]. Este foi o preço pago pela Contrarreforma, pela intolerância papal e pela obsessão em se aniquilar os “hereges” a qualquer custo. Não surpreende que mesmo diante desse cenário tão calamitoso de ruína total, o papa e os jesuítas preferissem que se continuasse matando em vez de encerrar as hostilidades na paz de Westfália.
Mesmo sem conseguir êxito total, o papa pôde se orgulhar do fato de que “territoriamente a Igreja Católica Romana saiu da guerra em melhor situação do que quando entrou nela, às expensas do protestantismo. Foi dentro do protestantismo, e notadamente em uma de suas igrejas, a dos Irmãos Boêmios, que foi a maior vítima, na qual novos fluxos de vida, sobretudo, surgiram”[69]. Não obstante, isso não foi muito comemorado em Roma, que há muito tempo esperava por muito mais. Pirenne destaca que “o fracasso da ofensiva da Contrarreforma faria a Europa adaptar-se politicamente à diversidade ideológica nascida ao calor de sua evolução religiosa, econômica e social”[70].
A guerra, que começou “pelo esforço da Igreja Romana”[71], mostraria a ela mesma que “o protestantismo não podia ser derrotado com armas”[72].
Fonte:http://www.lucasbanzoli.com/2018/08/conheca-guerra-dos-trinta-anos-suas.html
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